sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O IC e a análise química de águas de abastecimento público

Apesar das preocupações com a qualidade da água destinada ao consumo humano se terem feito sempre sentir, revelou-se escasso o controlo que as populações tinham sobre este aspecto das suas vidas, excepto talvez no sentido de evitar degradar algumas fontes com excrementos ou outros efluentes provenientes da actividade humana. Com a Revolução Industrial e com o aumento de fontes de poluição, este assunto tornou-se de importância capital para a sustentabilidade das grandes cidades europeias. Foi no século XIX que as políticas de higiene pública se implantaram, com o objectivo de evitar não só problemas relacionados com envenenamentos mas também a transmissão de doenças e a ocorrência de epidemias atribuídas, pelo menos em parte, ao abastecimento público de águas.

Em Portugal, este problema foi desde logo suscitado por António Augusto da Costa Simões (1819-1903), professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e sócio efectivo do IC, relativamente à cidade de Coimbra.

Francisco António Alves (1832-1873), lente de Anatomia Patológica e Toxicologia da UC, fundador do gabinete de Anatomia Patológica e também sócio do IC, já tinha iniciado estudos analíticos das águas de Coimbra a fim de detectar a sua potabilidade. Os resultados desses estudos foram publicados em 1862 n’O Instituto sob o título de Hidrologia. Alves salientou a importância da hidrologia sob o ponto de vista terapêutico e de higiene pública, afirmando: “oxalá se desse a este objecto toda a attenção de que elle carece, e de que se torna tão digno!”. As análises que realizou incidiram nas águas do rio Mondego e de mais cinco fontes da cidade de Coimbra. Restringiram-se à determinação qualitativa de “saes terrosos”, com a aplicação de reagentes sobre água fervida e filtrada e depois levada à ebulição, e à determinação dos graus “hydrotimétricos” de ácido carbónico, de sais de magnésia e de sais de cal (dureza da água).

Tendo sido, entre 1856 e 1857, presidente da Câmara Municipal de Coimbra, Costa Simões iniciou em 1865 o projecto de abastecimento público de água em Coimbra, com origem em captações e elevações a partir do rio Mondego. Mais tarde, veio a publicar no mesmo jornal um estudo pormenorizado das águas públicas de Coimbra, onde incluiu alguns mapas das análises efectuadas por Alves. Nos artigos com o título Abastecimento d’Águas em Coimbra, Costa Simões relatou, em pormenor, todo o processo de desenvolvimento deste empreendimento. Destaca-se a preocupação demonstrada na avaliação da qualidade da água, fazendo depender esta do seu “arejamento” e conteúdo mineral, dentro de certos limites. Baseando-se no Traité d’hygiène, de Adrien Proust (1834-1903), publicado em 1881, salientou a utilidade dos sais minerais nos processos nutritivos e de crescimento humano, em particular a sílica, o carbonato de cálcio e o cloreto de sódio.

Foi, contudo, preciso esperar pelas últimas décadas do século XIX para os assuntos relativos à qualidade da água se imporem nos círculos académicos portugueses e ser dada uma maior atenção às respectivas análises químicas. A importância dada a este assunto pelos sócios do IC foi confirmada pelas conferências realizadas no salão nobre desta sociedade em 1879 por José Epifânio Marques (1831-1908), médico natural de Estremoz, doutorado em 1861 em Coimbra, e autor de vários artigos n’O Instituto. A primeira conferência, de 3 de Maio, teve por título Valor Hygienico da Agua Potavel.

A segunda conferência de Marques ocorreu em 24 de Maio. Nela foi defendida a tese que a insalubridade das povoações em geral, e a de Coimbra em particular, estão em grande parte subordinadas á falta d'agua potavel, e sobretudo á sua má distribuição”. O orador começou por descrever alguns marcos na história do abastecimento público de água no mundo e em Portugal, dando o exemplo das preocupações higiénicas em Inglaterra. O orador falou sobre os perigos e consequências do consumo de águas impróprias, por razões químicas e/ou biológicas, alertando para os problemas específicos das águas de Coimbra e apontando algumas soluções a adoptar pela Empresa de Águas de Coimbra, representada na altura por Costa Simões e por Adolfo Ferreira Loureiro (1836-1911), o autor do projecto que seria publicado no volume seguinte d’O Instituto. Marques foi presidente do IC de 1893 a 1896.

Entre 25 de Junho e 16 de Julho de 1894, Ferreira da Silva realizou um conjunto de conferências na Sociedade União Médica do Porto sobre o exame das águas potáveis, sob o ponto de vista da higiene, que também foram publicadas n’O Instituto. Em 1881, Ferreira da Silva tinha publicado os seus primeiros trabalhos sobre análise de águas, designadamente Aguas, teorias chimicas e As aguas do Rio Souza e os mananciaes e fontes da cidade do Porto, que serviu de base ao projecto de abastecimento público de água nesta cidade. Nessas conferências, o autor estabeleceu quatro componentes da análise de águas: o exame físico e organoléptico, o exame químico, o exame microscópico e o exame bacteriológico.

Após as pioneiras análises feitas por Alves às águas de Coimbra, em 1862, decorreram 35 anos sem haver quaisquer exames químicos, muito embora tivesse sido concretizado o projecto de abastecimento público, com obras iniciadas em 1882. O francês Charles Lepierre (1867-1945), na altura chefe de trabalhos do Gabinete de Microbiologia da Faculdade de Medicina da UC, assumiu esta tarefa e, em conjunto com o professor de Farmacotecnia na Escola de Farmácia da UC, Vicente José de Seiça (1858-1928), analisou 25 amostras de águas de fontes e poços da cidade, da água do Mondego e da água canalizada no laboratório da Escola Industrial Avelar Brotero.

Lepierre tinha concluído o curso de engenharia química na Escola de Física e Química Industriais de Paris em 1887. Foi aluno de Roberto Duarte Silva (1837-89), um químico português de origem cabo-verdiana que foi nomeado professor da referida escola em 1881 e eleito seis anos depois presidente da Sociedade de Química de Paris. Por influência de Duarte Silva, Lepierre veio para Portugal em 1888, passando a dirigir os trabalhos práticos de química da Escola Politécnica de Lisboa. No ano seguinte, foi nomeado professor da Escola Industrial Brotero, em Coimbra, ingressando depois no Gabinete de Microbiologia da Faculdade de Medicina da UC. Durante os 20 anos em que esteve em Coimbra, desempenhou várias funções, incluindo a direcção dos Serviços Municipalizados, tendo criado um curso livre de Química Biológica, no ano lectivo de 1897-98, que funcionou no IC. Seiça, farmacêutico e Professor de Farmacotecnia na Escola de Farmácia de Coimbra, foi director do Dispensatório Farmacêutico da UC. Ambos foram sócios do IC.

Lepierre participou no 2.º Congresso Internacional de Química Analítica, realizado em Paris em 1896, tendo sobre ele publicado um extenso relatório n’O Instituto. (excerto de um artigo mais extenso intitulado “O IC e a Análise Química de Águas Minerais em Portugal” submetido na revista Química Nova, uma publicação da Sociedade Brasileira de Química)

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